Você
é só um humano? Pois trate também de ser um militante gay, negro,
feminista, um cicloativista, sei lá eu. Quem é apenas um humano não é
porcaria nenhuma!
Você é apenas um humano? Então chegou a hora de acrescentar a essa condição vulgar algo que vá distingui-lo.
Quem é você, leitor?
Ou melhor: o que é você?
Você é alguma coisa?
Você tem algum grupo?
Você pertence a alguma categoria acima dos humanos?
Você é gay?
Você é cicloativista?
Você é negro (militante?)
Você é mulher (militante)?
Trate de
ser alguma coisa “enquanto coisa”. E isso, que é uma parte de você, é
que lhe conferirá identidade e lhe permitirá dizer, diante do “outro” e
dos outros: “Me respeite!”.
Estamos na
era em que é preciso pertencer a um grupo para ter direitos — se for o
caso, até mesmo para cassar direitos alheios: o direito que o “outro”
tem de ter uma opinião, por exemplo. Nem pensar! Se eu, “enquanto membro
de um grupo”, me sentir ofendido, que se dane! Quero que se cale!
A
estupidez desses tempos vai ganhando contornos assustadores até mesmo
diante do horror — ou especialmente em face dele. Vejam o caso do rapaz
que transitava numa bicicleta na Avenida Paulista e teve um braço
arrancado por outro, que conduzia um automóvel. O motorista não prestou
socorro o ciclista, correu alguns alguns quilômetros com o membro do
outro pendurado no veículo e depois o jogou no rio.
Na
imprensa, o que teve o braço decepado virou “o ciclista” — e não apenas
porque transitava numa bicicleta. É que o “ser ciclista” é a mais
recente “categoria” que define o “ser humano”.
Só no primeiro semestre do ano passado,
MORRERAM ATROPELADAS EM SÃO PAULO 268 pessoas. E, segundo a CET, isso
havia representado uma queda de 17% em comparação com igual período do
ano anterior. E, no entanto, essas mortes não são notícia porque
aqueles que morreram não “eram alguma coisa”; eram apenas expressões
daquele humano que já quisemos um dia, em tempos talvez menos obscuros, o
“ser universal”.
É claro
que é um absurdo o que aconteceu na Paulista. Não estou tentando
minimizar nada, não! Ao contrário. Estou apenas fazendo um esforço para
explicar que o “ser ciclista” não confere gravidade especial ao
ocorrido. Já é grave o bastante. Um braço humano foi arrancado e jogado
no esgoto. Duzentas e sessenta e oito vidas foram cassadas no primeiro
semestre do ano passado!
Em que reside o absurdo, por exemplo, da tal PLC 122,
a que diz “criminalizar” homofobia? Agredir ou matar um gay passa a ser
considerado, na prática, um crime mais grave do que se a mesma agressão
fosse praticada contra um não gay. Qual é a justificativa moral de
fundo para isso? “Ah, precisamos desestimular as ocorrências contra esse
grupo em particular…” E então se recorre ao agravamento da pena. Mas
esperem: nós precisamos desestimular a violência de maneira geral; há 50
mil homicídios dolosos por ano no país. O curioso é que os mesmos que
defendem a PLC — às vezes, para não ter de enfrentar o protesto dos
grupos militantes — tendem a afirmar que penas mais pesadas não coíbem
crimes.
O ser
simplesmente “humano” vai perdendo prestígio. À era das expressões das
identidades corresponde um evidente rebaixamento do que, no fim das
contas, define o homem, aquele animal singular que um dia mereceu
distinção por ser dotado de pensamento, de consciência de si, de
individualidade — mesmo em situações potenciais. É preciso que ele deixe
de ser o simplesmente humano, com a sua gigantesca variedade, para ser
reduzido a uma categoria influente se pretende ser respeitado.
Aqui e ali
me perguntam: “Mas como você consegue ser católico?”. Não acho que os
elementos de fé devam se prestar a proselitismo, e entendo que a gente
não captura a crença; costuma acontecer o contrário. Os meus amigos
sabem que não torro a paciência de ninguém com isso. Mas respondo: ainda
que eu não fosse católico, ainda que não cresse, eu o seria, eu daria
um jeito de crer. A Igreja Católica é hoje a única instituição de
alcance universal — as igrejas protestantes, como se sabe, são bastante
fragmentadas, embora a maioria comungue dos mesmos valores a que me
refiro — que faz a defesa incondicional da VIDA HUMANA em qualquer um de
seus estágios, em qualquer condição. Não fossem os elementos de fé, E
ELES BASTARIAM, a me levar a defender o cristianismo (no meu caso, o
católico), haveria as minhas convicções humanistas a determinar a
escolha.
E não! Não
acho que é preciso “ser cristão” para que se possa fazer essa defesa
incondicional da vida. Conheço muitos agnósticos que pensam a mesma
coisa.
Essa era
do “identitarismo”, do “só sou porque sou alguma coisa” reduz a dimensão
do humano e torna, de fato, o mundo muito mais intolerante.
Prefiro a
causa humana. Não me choca que um motorista arranque o braço de um
ciclista. Não vivo num mundo de corporações disso ou daquilo. É uma
forma primitiva de existência. O que me espanta é que pessoas possam
fazer isso com pessoas.
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